terça-feira, 6 de novembro de 2007

Por que você ouve tanta porcaria?



Enquanto lia o artigo da revista Aplauso, percebi que escutava o que, para mim, definitivamente não é porcaria: um álbum de 1987 do grupo britânico Cocteau Twins: Victorialand. A capa já é uma obra de arte, prenúncio da obra-prima que se estende ao longo de nove belíssimas faixas.

Acredito que possa tecer algumas considerações acerca da qualidade de um grupo musical quando, em primeiro lugar, atento para a data de lançamento da música em questão. Observe você que citei um álbum de 20 anos. Penso ser pouco provável que um trabalho musical vazio, sem conteúdo, se sustente por duas décadas nos nossos ouvidos. Óbvio que praticamente ninguém com quem eu converse tenha idéia do que seja este tal Cocteau Twins. A única vez que os ouvi no rádio foi em 1984, altas horas da madrugada, quando o locutor (ninguém dizia DJ na época) anunciou um grupo "diferente". Lembro que fiquei encantado com aquele som etéreo, pois a mim parecia que do paraíso haviam escapado notas sublimes, sublinhando uma voz única, que realmente não tem paralelo no meio musical, da vocalista Elisabeth Fraser.

No texto da revista Aplauso comenta-se que treinamos o ouvido desde crianças. Se a intenção do autor foi decretar que estamos fadados ao mesmo gosto musical por toda a nossa existência, discordo por completo, pois seria negar a mutabilidade inerente ao ser humano. Um pouco de história... a minha história, para justificar o porquê de minha afirmação.

Até 1984, eu comprava basicamente discos (ainda em vinil) com trilhas de novela. Depois de muitos álbuns e inúmeras novelas, começou a soar tudo igual. Lembro bem que não mais me sentia satisfeito com as músicas que vinham gravadas ao longo das 12 faixas ou mais de cada álbum.

Um dia, pintava as paredes de meu quarto e ouvia a rádio Ipanema FM, que era muito melhor do que se tornou, e que de alguma forma trazia músicas que eu estava buscando, ou seja, artistas fora do esquema das novelas. Aí tocou uma banda chamada The Jesus and Mary Chain. As notas musicais eram paupérrimas, acho que só uma variação de três ou quatro. Mas havia tanta alma naquelas poucas notas, nas guitarras distorcidas, no vocal soturno, sombrio e quase doce, que antes da música terminar eu já havia largado o pincel, limpado as mãos e me propunha a sair correndo para Porto Alegre e comprar o disco do artista. Bastou ouvir o nome, fui até a Galeria Chaves, numa loja que não existe mais – Pop Som – e voltei de lá com um álbum celebradíssimo um mês depois da revista Bizz, publicação que eu passei a acompanhar naquele tempo. Lembro de uma frase do crítico, o qual babava pelo grupo: “a arte quer morrer!” Isso me pareceu tão forte, contundente. Hoje entendo que ele se referia à subversão ao modismo, pois cada faixa do álbum era uma espiada em algum recanto escuro da alma do ouvinte, não uma celebração à bundas, peitos e congêrenes de apelo popular de venda certa. Até hoje é um de meus álbuns favoritos, que obviamente comprei anos depois em cd, aliás importado, pois aqui não houve interesse por parte de gravadora alguma em distribuí-lo quando os cds começaram a circular em lugar do disco de vinil.

Falando em importados...

Acho que 90% dos cerca de 800 cds que formam minha coleção vieram de fora. Não que o dinheiro estivesse ou esteja sobrando, bem pelo contrário. Mas experimente você gostar de algo que não é comum em tempos que não havia internet (ainda que nessa área pouco tenha mudado quando se trata de acesso à determinadas obras). Por isso, acabei desenvolvendo um gosto que se diferenciou da maioria mas que, óbvio, encontra seus pares aqui e ali, pois o artista só existe porque existe quem aprecia seu trabalho. Aliás, a internet, com suas lojas virtuais, pelas quais é possível adquirir praticamente tudo de qualquer lugar do mundo, tirou completamente o sabor que existia em ir até algumas poucas lojas de Porto Alegre que se especializaram em cds importados. Tomava-se em mãos catálogos que pareciam listas telefônicas e, para desespero e/ou alegria nossa, os fãs, deparava-se com inúmeros títulos dos artistas favoritos que jamais sairiam aqui. Boa parte da minha coleção do citado Cocteau Twins assim foi adquirida. Atualmente, faço minhas compras pela Internet, procurando valores coerentes e recebendo em prazos menores do que outrora, pois a espera geralmente beirava três semanas.

Mas o assunto é música, não compras.

Na minha primeira postagem no fórum procurei não citar este ou aquele estilo ou artista e separar o que para mim é o joio do trigo. Penso que a música é um exercício de democracia. As pessoas não podem ser obrigadas a gostar de algo (ainda que pareçam subliminarmente ser) e verem-se ridicularizadas ao assumir que ouvem este ou aquele artista considerado de menor valor. Quem tece tais considerações afinal? A música que provocou uma virada no meu gosto musical tinha apenas três notas. E dizer que o povo escuta esta ou aquela música porque não entende o significado de letras de artistas mais “completos” é esquecer que o povo escuta aquilo que é colocado no rádio e na tv para que ele consuma, sem reflexão mais profunda. Não acredito que um pagodeiro ou fã de música sertaneja não se comova com a letra de “Chega de Saudade”. Um pedacinho: “Vai minha tristeza e diga a ela que sem ela não pode ser. Diz-lhe numa prece que ela regresse, porque não posso posso mais sofrer.” E olha que se trata de um dos mais belos exemplos de nossa bossa nova, celebrada ao redor do mundo, mesmo por quem não compreende uma única palavra do que é cantado, em função das diferenças de idioma, não de classe social. Aliás, é da música esta capacidade de transpor as “barreiras” da língua, das culturas, das classes,... Uma obra musical é como uma pintura: seu autor pode estar no outro lado do globo, mas seu trabalho te toca de forma profunda, te fazendo desejar ter em sua casa aquele trabalho. Nossa discoteca particular, ou as músicas que acumulamos na memória ao longo dos anos, são como álbuns de fotografias, visto que também contam muito de nossa história.

Em sala de aula temos, como educadores, a oportunidade de celebrar a democracia que é a música. Trazer para a escola apenas o que nós acreditamos ser a boa música é assumir uma postura semelhante a da indústria fonográfica, que direciona toda uma massa de acordo com seus objetivos. Que tenha espaço entre nós vários nomes, inúmeros artistas e incontáveis estilos. Indispensável contextualizá-los, ou estaremos promovendo simplesmente uma imensa salada, tão grande a mistura que pode ficar com um sabor enjoativo.

E se você deseja dar um presente a seus ouvidos e oportunizar também a seus alunos ouvir algo diferente, aqui vai a ponta do iceberg de meus grupos favoritos (e que podem soar uma porcaria para muita gente; viva a democracia musical!):

  • Cocteau Twins
  • Dead Can Dance
  • This Mortal Coil
  • His Name Is Alive
  • Bjork
  • The Sugarcubes
  • Sigur Ros
  • Enya
  • João Gilberto
  • Marisa Monte





2 comentários:

Geny disse...

Querido aluno Paulo!
Parabéns, que maravilha de Portfólio! Com tudo, competentemente registrado com criatividade e sustentações teóricas e práticas. Procure ter bem presentes às evidências de cada trabalho, como as suas respectivas argumentações, assim não terá dificuldades no trabalho final do semestre.
Um grande abraço.
Geny Schwartz da Silva
Tutora Sede – Seminário Integrador III e Teatro
PEAD/FACED/UFRGS
09.11.2007

Geny disse...

Querido aluno Paulo,
Lendo atentamente os teus registros referentes ao gosto pela música, nas observações que fizeste, contemplei o respeito com que tens pelo seu humano, tanto nos saberes clássicos com nos populares.
Beijos, Geny