quinta-feira, 29 de outubro de 2009

* Todos podem aprender? *



Na postagem do dia 23 de outubro – Possibilidades! – comentava acerca das experiências acumuladas ao longo destes 21 anos de prática docente, assim como das “respostas” que nos eram apresentadas para, supostamente, todas as ansiedades em sala de aula, as quais resolveriam os impasses até então insolúveis. Obviamente, tais “soluções” revelavam-se mais uma bravata pedagógica de quem a alardeava do que uma opção "definitiva". Mas o que era ponto pacífico décadas atrás, passou a ser questionado: a questão da inteligência e da capacidade que todo indivíduo teria de aprender. Teria mesmo?

Para Piaget, o que chamamos de inteligência é, mais profundamente, “aquilo que possibilita aos seres vivos continuarem assim no contexto de suas transformações.” Particularmente, acho magnífica definição – não a única, tenha-se em mente – de inteligência, visto que nos remete à maleabilidade dos seres vivos. Se nossa ótica compactuar com Piaget, então a inteligência não é exclusiva dos seres humanos, o que ampliaria consideravelmente os estudos sobre a mesma. Para melhor entendermos a abrangência da definição aqui dada para inteligência, consideremos um diamante. A eternidade é própria dos minerais, posto que os elementos que os permitem ser o que são neles já estão presentes. Os seres vivos, contudo, necessitam buscar fora de si elementos indispensáveis para a garantia de sua existência, ainda que efêmera. Os vegetais, por exemplo, não sobrevivem sem a água, o solo, o ar e os animais, estes últimos para efeitos de polinização. E quanto ao ser humano? Quais as perspectivas de sobrevivência sem a presença daquela que o gerou ou de um semelhante? Casos de crianças que não pereceram ao abandono, tendo sido criadas por lobos, já foram relatados. Mas minha provocação nesta postagem não é a exceção aparentemente fictícia, porém real, da capacidade de superação dos elementos vivos. Penso, isso sim, nas implicações de ordem fisiológica, emocional, psicológica e cognitiva das interações entre os semelhantes.

Maturana e Varela, no já clássico A Árvore do Conhecimento, remetem-nos a uma reflexão sobre como se dá o conhecimento humano, principalmente ao nos fazer ponderar que o representacionismo seria um engodo aos olhos da pedagogia. Para Maturana e Varela, “vivemos no mundo e por isso fazemos parte dele; vivemos com os outros seres vivos e, portanto, compartilhamos com eles o processo vital. Construímos o mundo em que vivemos durante as nossas vidas. Por sua vez, ele também nos constrói ao longo dessa viagem comum.” A teoria representacionista, por sua vez, postula que somos separados da natureza e que o mundo segue como se apresenta apesar de nossa experiência. Para os dois biólogos chilenos, nosso desenvolvimento fisiológico, emocional, psicológico e cognitivo está intrinsecamente ligado as relações interpessoais, pois nossa trajetória nos faz construir nosso próprio conhecimento.

A bem de ilustrar tal afirmação, faço uso da relação que Maturana e Valera estabeleceram entre o homem e a praia. Ao final de uma caminhada ao longo da praia, o homem não é mais o mesmo que iniciara aquele trajeto: suas emoções se modificam, seus pensamentos são influenciados pelo entorno e todos os seus sentidos são atingidos por estímulos que são parte daquele ambiente. Por sua vez, igualmente interferimos na paisagem, ou seja, a “praia também nos percebe”, dado que vamos deixando nossas pegadas registradas na areia.

Pois este bela e profunda obra de Maturana e Varela fizeram-me voltar o olhar às certezas de outrora, aceitas e referendadas por alguns estudiosos de então: de que certos indivíduos teriam menos condições de aprender do que outros. Atualmente, percebo que estes mesmos indivíduos não aprendem nas condições que lhes são oferecidas, isto é, a ausência de requisitos não estaria na pessoa, mas na proposta de ensino-aprendizagem. Pensar aprendizagem por esta ótica é subverter a lógica representacionista, é questionar o cartesianismo e o realismo científico. O que se faz necessário, portanto, é uma ampliação dos critérios que regem a própria avaliação da aprendizagem, pensando não somente nos resultados a que o aluno chegou, mas igualmente no que lhe fora oferecido para tanto. Isso nos faz pensar em Kant, o qual afirmava que o conhecimento inicia na e pela experiência, mas não se limita a ela. Faz-nos pensar igualmente em nossos Projetos de Aprendizagens, movidos tanto pelo desejo de apreender quanto por um indispensável exercício de humildade, posto que nossas certezas viam-se abaladas a cada nova incursão pelo tema escolhido. E é de Maturana e Varela que tomo emprestadas as palavras para encerrar esta postagem, convidando a quem visita este blog a pensar: “Conhecer é um convite a suspender nossos hábitos de cair na tentação da certeza.”

E, respondendo ao questionamento inicial, afirmo sem qualquer dúvida: todos podem participar de forma ativa do processo de ensino-aprendizagem. Que lhes sejam dadas as condições necessárias para tanto e que as relações entre os atores do processo estejam pautadas na alegria da descoberta e no encantamento por aprender.

Referências:

PIAGET, JEAN (1936). O nascimento da inteligência na criança. Tradução de Álvaro

Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.

MATURANA, Humberto R., VARELA, Francisco J. Preface. The tree of knowledge: the biological roots of human understanding. Boston e Londres: Shambhala, 1998, págs. 11-13.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Editora Ícone

2 comentários:

Geny disse...

Caro aluno Paulo,

Concordo, “o que era tranqüilo há décadas atrás hoje é questionado”, que bom que houve mudanças, os questionamentos, as dúvidas nos levam a pensar nas certezas.
Que ganho significativo no percurso de sua experiência ao longo dos anos e com mais o somatório de conhecimentos teóricos e práticos adquiridos, na trajetória acadêmica.
Muito pertinentes suas colocações e reflexões referentes à inteligência segundo Piaget.
Afirmação que vem culminar o fechamento de seus questionamentos é relevante colocando o processo de aprendizagem ao alcance de todo o ser humano, dentro das condições e oportunidades que lhes são oferecidas, aí entra o aluno com sua realidade, com sua bagagem, com seu saber, que muitas vezes não é valorizado.
“Possibilidades!”
Por mais difícil que seja trabalhar com as incompreensões de pessoas que não almejam ou não acreditam em mudanças na Educação, por comodismo, etc...
Eis o desafio!
Parabéns pelos lindos e queridos alunos, apresentando uma ligação de amizade recíproca, necessidade primordial para o desenvolvimento psicológico, cognitivo e afetivo de uma criança, acredito que esses alunos já não serão mais os mesmo depois de sentirem o respeito, o acolhimento de um Educador comprometido com mudanças, na comunicação, na maneira de ministrar suas aulas, aproveitando os recursos disponíveis, na certeza que já faz a diferença na Educação Contemporânea.
Obrigado por suas postagens!
As suas produções registradas no seu Portfólio são grande relevância!
Um grande abraço,
Geny Schwartz da Silva
PEAD/FACED/UFRGS

Paulo disse...

Querida professora:

Seus comentários tanto nos deixam lisonjeados quanto nos estimulam a refletir.

Não é fácil romper com o certo de então (de uma época), pois toda desacomodação gera ansiedade. Na educação não seria diferente, principalmente porque nosso trabalho mexe com vidas, muitas vezes interferindo de forma quase definitiva com as escolhas que serão feitas pelos pequenos.

Meu único receio são os modismo, travestidos de novidades sobre a velha carcaça do que já se mostrara infrutífero. Para nossa sorte, temos pessoas do seu quilate e toda a equipe do PEAD nos orientando a observar o que enriquece nossa prática e possibilita uma flagrante e sistemática construção de conhecimento pelo viés dos saberes de todos os atores envolvidos no cotidiano escolar.

Muito obrigado por suas atenciosas orientações também aqui em meu portfólio.

Um abraço.

Paulo